O anarquismo teve uma presença enorme na sociedade espanhola até a Guerra Civil. Sua influência diminuiu mais tarde, embora existam aqueles que pensam que ele morreu porque alcançou seus objetivos, porque muitas de suas ideias foram se impondo socialmente com a passagem do tempo. No século XXI, com a crise econômica e de valores morais, há mesmo certo ressurgimento entre os trabalhadores e a cidadania. O historiador Hector Gonzalez, que acabou de lançar o livro “La CNT asturiana durante la Transición española” (KRK), analisa o fenômeno neste artigo.
A sociedade escolher o estado, mas os anarquistas não conseguem aceitar isso e irão tentar novamente implantar um sistema ultrapassado e que não serve mais para o presente e futuro da humanidade.
Que o anarquismo morreu de sucesso é um dos argumentos que tende a ser exposto para explicar os motivos de sua falta de presença, como sujeito político ativo, na sociedade espanhola.
Ou que morreu de fracasso. A outra grande explicação viria a dizer precisamente o contrário, a falta de relevância política, em um país que tradicionalmente respirava anarquia pelos poros, é graças ao fracasso de seu projeto político.
O certo é que, além de erros específicos, o anarquismo espanhol não sabia como administrar ou se adaptar ao seu próprio sucesso – ou melhor, ao sucesso que as ideias-forças libertárias tinham nas sociedades europeias na década de 1960. Ambas as explicações são, portanto, compatíveis: em razão de seu sucesso, o anarquismo teve implícito o seu fracasso.
A horizontalidade na organização e tomada de decisões, a rejeição da Monarquia, do sistema parlamentar, dos partidos políticos e ao conhecido como Regime de 78 – de qual o anarquismo foi o seu adversário mais fervoroso desde a Transição – são ideias, se não majoritárias, amplamente difundidas na população espanhola e muito presente em todos os processos coletivos dos últimos anos, como o 15-M [protestos “espontâneos” de 2011].
No campo laboral, tanto os processos de assembleias como os novos fenômenos de auto-organização fora das estruturas sindicais tradicionais – sindicatos dos trabalhadores do setor de fabricação de mantos, de kellys [faxineiras], de músicos – não deixam de lembrar as fórmulas organizacionais e de mobilização de que beberia a CNT.
Mas além do movimento operário e cidadão, as Prefeituras participativas, as escolas gratuitas, as lutas pelo espaço urbano e a habitação, as ecologistas, pacifistas ou feministas têm uma raiz profunda no tronco libertário. Embora estes não venham exclusivamente do anarquismo, o ideal libertário está gravado em seu DNA.
Essas propostas político-sociais de natureza anarquista permeiam a sociedade, não apenas a espanhola, mas a ocidental. No entanto, com algumas exceções, o anarquismo organizado não possui uma projeção social relevante.
Por quê? Porque o anarquismo não foi capaz, na Espanha da Transição, de adaptar suas organizações e programas à nova realidade emergente, apesar de que propostas nesse sentido não faltaram. Foram aquelas iniciativas que talvez se equivocaram por ter razão demasiadamente cedo.
Propostas libertárias na Transição
Não foram poucas e, na sua imensa maioria, estavam ligadas à CNT. Não em vão, a trajetória revolucionária do anarcossindicalismo, a sua horizontalidade e independência de partidos e organizações, tornaram-se extremamente atraentes tanto para as diferentes correntes do pensamento libertário como para centenas de milhares de trabalhadores.
Da CNT vieram as propostas mais importantes de assemblearismo e auto-organização no mundo do trabalho. Uma defesa a todo custo da autonomia dos trabalhadores e das assembleias que ia contra a direção tomada pela Transição. Proposta acompanhada ainda de uma oposição frontal à saída reformista da ditadura e ao processo de pacto social.
Foi também a central anarquista guarda-chuva de organizações específicas que propuseram outros tipos de lutas, como a Federação Anarquista Ibérica, a Federação Ibérica de Grupos Anarquistas ou a Federação Ibérica de Juventudes Libertárias. De coletivos feministas como Mulheres Livres ou Mulheres Libertárias. De grupos de prisioneiros como COPEL e suas redes de apoio. De revistas de temas variados como Ajoblanco, Askatasuna ou Pa’lante – que na época sairiam assustados do sindicato – e de um sem fim de grupos libertários e grupos preocupados com diferentes temas, de natureza mais social ou cultural.
Uma vez que a variedade de coletivos e propostas é quase inumerável, basta citar alguns exemplos, em relação às propostas de natureza mais social e global, para avaliar a relevância desse fenômeno nos anos que se seguiram à morte do ditador Francisco Franco.
Askatasuna
A revista coletiva e libertária Askatasuna nasceu por iniciativa de um grupo de jovens bascos em 1971. Desde 1975, seus militantes, que já colaboravam ativamente com grupos de cenetistas exilados, impulsionaram a reconstrução da CNT no País Basco, sendo atores de grande importância até a sua saída em 1978.
Askatasuna tem o mérito de reunir muito claramente todas as propostas sociopolíticas que procuraram atualizar o anarquismo e a CNT durante a Transição, com a particularidade de introduzir um fato de grande relevância, tanto naquela época quanto nos nossos dias: a questão nacional.
A proposta não era senão a transformação da CNT em uma organização que ampliou seu campo de atuação para todas as áreas da vida. Uma CNT global.
Dado que, de acordo com suas análises, o eixo principal da exploração capitalista já não ocorria no local de trabalho, mas em todos os aspectos da vida cotidiana, a CNT devia superar o ambiente de trabalho e concentrar seus esforços em lutas de bairro, ambientalistas, antirrepressão, cultural, feminista, pedagógica ou contra a vida cotidiana.
A proposta de organização derivada desta análise e várias críticas ao sindicalismo – embora fossem da CNT – propôs a construção de uma organização entendida como uma enorme assembleia libertária de ação autônoma, movendo o centro de decisão geral do sindicato para a assembleia de todos afiliados. Do mesmo modo, visava reconhecer a pluralidade de opções orgânicas e ideológicas anarquistas para transformar a CNT em baluarte da unidade dos trabalhadores. Uma proposta em que o modelo tradicional de organização, por sindicatos, ficava relegado a apenas questões profissionais e nunca sociais.
Do mesmo modo, Askatasuna – fortemente influenciada pelas lutas de libertação nacional e pela situação em que o País Basco estava passando – defendeu a necessidade do anarquismo e da CNT assumir como suas próprias as diferentes realidades nacionais do Estado espanhol e as lutas de seus diferentes povos contra o imperialismo e a favor da independência. Assim, o coletivo colocava não uma posição em favor do direito à autodeterminação, mas sim uma tomada ativa de partido na luta pela independência de territórios como o País Basco.
Os Apaches
Denominados assim porque foram acusados de terem entrado na CNT para causar tumulto, esta proposta é mais informal e bebe das posições elaboradas por Luis Andrés Edo, que inclinou as forças anarquistas do campo de trabalho para o social, prestando especial atenção aos setores marginalizados – prisioneiros, lutadores pela libertação sexual, contraculturais. A principal contribuição feita foi a leitura anarcossindicalista da história.
O anarcossindicalismo, como defendiam, deu respostas diferentes a todas as situações do movimento operário – o fundamento da AIT, a criação da CNT, o pistoleirismo, a revolução de julho de 1936 – e, em um momento em que se limitava a lutar por uma Lei Orgânica das Relações Trabalhistas, o caminho revolucionário autêntico passaria por uma mudança na orientação do anarcossindicalismo para alcançar uma conexão histórica com o movimento social (de orientação extra-sindical) e romper assim o processo de pacto social.
Essas propostas entraram em confronto com grande parte da militância anarquista e cenetista da época, que entendeu que o projeto integral desnaturalizava o sindicato em termos de sua projeção histórica e, no segundo caso, também dava uma imagem desagradável à CNT, transmitindo pouca preocupação com os problemas do momento. O resultado final deste choque resultou na saída ou na expulsão de muitos dos militantes e coletivos localizados em coordenadas ideológicas sociais ou globais que consideravam imprescindíveis essas incorporações ou mutações das organizações anarquistas, a fim de manter uma influência social nas décadas seguintes.
Um anarquismo que ressurge?
A explosão que supôs em todos os sentidos o 15-M colocou no centro do tabuleiro social uma multidão de perguntas e mobilizações há muito tempo gestadas em décadas atrás. Ninguém pode duvidar ademais, porque era muito visível, que suas fórmulas organizacionais e suas demandas eram perfeitamente anarquistas.
A assembleia, a rejeição aos partidos, aos líderes e aos políticos profissionais, e a horizontalidade no modelo organizacional estavam no DNA do 15-M e esse espírito deixou sua marca na sociedade espanhola, que vê novamente florescer hábitos e comportamentos libertários que pareciam ter passado à história. Sim, o anarquismo ressurge e não apenas nas ideias-força ou coletivos que assumem sua prática e consciência, mesmo sem conhecê-lo e, claro, são quantitativa e qualitativamente muito superiores à década anterior.
O anarquismo, moderno e adaptado ao século XXI, está ressurgindo nos últimos anos, promovendo todos os tipos de iniciativas libertárias, de novos centros sociais à escolas estritamente livres, passando por redes de apoio mútuo, novas organizações específicas e de estudantes, nova imprensa e meios de divulgação e, finalmente, maior presença social. Suas organizações clássicas, como a CNT ou a CGT, experimentaram há algum tempo um aumento prolongado em sua afiliação, participação e impulso em conflitos coletivos e greves em todo o Estado. As formações de Sindicatos de Inquilinos são fortemente influenciadas por militantes libertários, quando não são impulsionados diretamente por suas organizações, como no caso do Sindicato de Inquilinos de Gran Canaria.
Em suma, embora as ideias, reivindicações e fórmulas libertárias tenham permeado a sociedade há décadas e, embora algumas propostas de atualização de rejeição ao Estado foram enunciadas há mais de 40 anos, parece que, agora sim, suas propostas são assumidas e aceitas pelos cidadãos. Ainda não é demasiado tarde para o anarquismo.
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