Documentário: Besta da nação



“Sol, por que está brilhando neste mundo? Estou esperando para pegar você com as minhas mãos, espremer tanto que não poderá brilhar mais. Assim, tudo será sempre escuro e ninguém terá que ver todas as coisas terríveis que estão acontecendo aqui.”
O arrebatador filme Beasts of no Nation é baseado no romance homônimo do escritor norte-americano, descendente de nigerianos, Uzodinma Iweala.
Primeiro longa-metragem da Netflix, aclamado pela crítica, com direção magistral de Cary Fukunaga e atuações irretocáveis do estreante Abraham Attah, no papel de Agu, o garoto que perde a inocência para se transformar em soldado numa guerra civil, e do ator Idris Elba, como o Comandante dos rebeldes.
Agu é uma criança feliz que vive com os seus pais e irmãos. Sorridente, imaginativo, amado pela família e pelos amigos, é um menino normal como outro qualquer da sua idade.
Nos primeiros minutos do filme, Agu diverte-se e brinca com outras crianças, tenta vender a moldura de uma televisão, em que diz ser uma “TV da imaginação”, recebe o carinho da mãe, uma bronca do pai, brinca com o irmão mais velho, vai à igreja com a família, enfim vive a sua infância.
Mas a guerra e sua brutalidade chegam ao seu vilarejo... É a África. Podia ser a Síria, o Curdistão, o Iraque, a América Latina ou qualquer outro bolsão de miséria que tanto nos cerca, que nos faz tão próximos e iguais.
No meio de uma disputa entre o governo e rebeldes, o vilarejo de Agu é devastado pelo exército. Enquanto seus habitantes são brutalmente caçados e executados, o menino consegue fugir para a selva.
Ao ser encontrado pelos rebeldes, sozinho e assustado, Agu é cooptado e obrigado a se transformar em um guerrilheiro. Neste momento vamos testemunhar a sua transformação, numa atuação esplendorosa do jovem Attah, que através dos seus olhos nos mostra, ao longo do filme, a perda da sua inocência, sonhos e esperança.
O Comandante a princípio é um personagem carismático e paternal, mas na verdade é um homem cruel e impiedoso, que doutrina as crianças, com seu discurso hipnótico e dançante, a combaterem como bestas sanguinárias.
No início do seu treinamento, a oração de Agu é apenas uma: “Deus, quero ver a minha mãe de novo. O Tenente diz que lentamente estamos vencendo a guerra. Então, se o Senhor quiser, posso acha-la novamente. Só o Senhor sabe disso.”
E assim, com medo da morte e de não rever a mãe, Agu segue com a nova “família”. Sem imaginar os horrores que encontrará pela frente. Sem imaginar que jamais voltará a ser a criança que um dia foi.

No meio de tanta violência e maus-tratos, Agu faz amizade com Strika, numa ótima interpretação de Emmanuel Nii Adom Quaye, que vira seu companheiro de infortúnio e dor. A amizade dos meninos é comovente, pois apesar de brutalizados são capazes ainda de chorar, juntos, todas as dores vividas.
Amadurecido e embrutecido, Agu sabe que sua infância está perdida. Não há mais pelo que sorrir e seus olhos agora são tristes e vazios. Sob sua ótica infantil ele nos diz:
Todos que conheço estão morrendo. E eu penso: Se essa guerra um dia acabar, não posso voltar a fazer coisas de crianças. A guerra está consumindo tudo. Folhas, árvores, terra, pessoas. Consome tudo. Faz as pessoas sangrarem em toda parte. Somos como animais selvagens sem ter para aonde ir.”
E cheio de tristeza, como se estivesse conversando com Deus, pergunta:
Sol, por que está brilhando neste mundo? Estou esperando para pegar você com as minhas mãos, espremer tanto que não poderá brilhar mais. Assim, tudo será sempre escuro e ninguém terá que ver todas as coisas terríveis que estão acontecendo aqui.”
Há almas que mesmo sujeitas as piores atrocidades relutam em ser totalmente corrompidas. É o caso de Agu. A sua desolação mostra que ele não sente orgulho pelo que fez, o que ele sente mesmo é saudade da família e vontade de ser criança novamente.
Mais: sente falta da humanidade que perdeu e que, no seu íntimo, ainda pode recuperar. Triste Agu. Triste humanidade. Triste somos todos enquanto a barbárie existir.
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Segundo as Nações Unidas, milhares de meninos e meninas são combatentes em mais de 20 países. Seguem abaixo os alarmantes dados colhidos do site da ONU:
No Afeganistão, as crianças são recrutadas por forças nacionais e em casos extremos, usadas como homens-bomba. Em alguns territórios da Síria e do Iraque controlados pelo Isil, crianças de pelo menos 12 anos passam por treinamento militar e também são utilizadas para carregar bombas em ataques suicidas, segundo a nota de Zerrougui e da Unicef.
Na República Centro-Africana, onde a violência sectária continua sendo um problema, meninos e meninas de oito anos de idade são recrutados para o combate por todos os lados em conflito.
Já na República Democrática do Congo, os meninos são enviados para o campo de batalha, enquanto as meninas são usadas como escravas sexuais. No Sudão do Sul, foram alistadas milhares de crianças-soldado.
As crianças que sobrevivem a essas dolorosas experiências carregam danos emocionais e físicos, na maioria das vezes para sempre irreparáveis. São crianças do mundo, são nossas crianças, são o futuro.


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